quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Significados e sentidos do Estado Democrático de Direito enquanto modalidade ideal/constitucional do Estado Brasileiro.

I. Algumas considerações sobre o Estado enquanto fenômeno político.

Muito se tem falado sobre o Estado enquanto instituição jurídica e como fenômeno político e filosófico da era moderna. Como lembra Wolkmer[1], na cotidianidade de um possível espaço público que denominamos de sociedade, subsiste um certo poder visível e invisível capaz de interferir, influenciar, condicionar a realidade material da convivência humana. Tal poder, ao longo da história do Ocidente, vem se estendendo para todas as esferas da vida, geralmente sob a forma de uma organização política.

Para alguns teóricos do Estado, esta figura estranha e por vezes insondável surge como uma extensão da natureza humana, necessariamente concebida como manifestação espontânea do indivíduo racional e intrinsicamente social.[2]

Para outros, entretanto, o surgimento do espaço social e mesmo do Estado está ligado ao florescer de uma cultura de produção calcada na exploração de mão-de-obra diferenciada e marginalizante, e, portanto, serve tão-somente para reproduzir determinadas estruturas sociais voltadas para interesses profundamentes privados e minoritários no âmbito da coletividade.[3]

Em obra anterior[4], já referi que é impossível enfrentar estas questões voltadas ao surgimento do Estado enquanto instituição jurídica e política sem passar pelo legado histórico da filosofia clássica grega e do jurisdicismo romano.

Os textos de Platão, Sócrates e Aristóteles dão conta de que o fenômeno social e político das relações sociais vão ser mediados por um determinado modelo de poder que se institutucionaliza gradativamente a partir da idéia de competências naturais de agir e de obedecer ordens advindas de lugares oficiais da representação popular/divina.

Estes autores, a despeito da insofismável contribuição legada à cultura ocidental, viveram um profundo esforço restaurador de suas histórias, que conta a história do berço da civilização moderna, principalmente quando a pólis grega vai se desfazendo aos golpes desintegradores do princípio cosmopolita e das teses individualistas vigentes. Em tal quadro, parece ser importante registrar a contribuição da Sofística ao debate.

Como lembra Bonavides[5], os Sofistas desenvolveram um trabalho crítico poderoso no âmbito da constituição do Estado e seus fundamentos filosóficos, e, estranhamente, são
ainda hoje tão incompreendidos e, não raro, levianamente omitidos por alguns helenistas-filósofos, cujos estudos de filosofia grega chegam ao extremo de principiar pela obra de Platão, numa tábula rasa...

Surgindo num período em que as disputas políticas deixam perceber de modo distinto a linha por onde a posição popular se separa das ambições aristocráticas, abaladas pela ascensão da democracia, os sofistas percebem com nitidez que é luta travada entre nobreza e povo que pauta todo o desenrolar da filosofia política e jurídica da Grécia, evidenciado, a partir daí, uma justificativa empírica para a desintegração daquele modelo de pólis.

O poder político, agora entendido como proveniente de um processo histórico e mundano de constituição do social, mediado por mecanismos de gestão operacional dos interesses sociais e privados, vai ser criticamente localizado num tempo e num espaço específico.[6] Neste tempo e espaço, a Sofística proclama como injusta a desigualdade do cidadão, decompondo o mythos, o logos e a pólis dos velhos tempos, sustentando que nenhum Deus instituiu a cidade/Estado, mas que foi obra exclusiva de homens, e contropando ainda aos valores absolutos da verdade, da justiça e da virtude valores meramente contingentes.

Enquanto a lei natural e a lei positiva no pensamento tradicional e filosífico predominante da Grécia do século VI e V a.C. se encontram entrelaçadas desde o ponto de partida[7], a Sofística parte do pressuposto da injustiça essencial das leis, que têm sempre por fundamento o interesse daqueles que a elaboram, e, portanto, são batizadas como expressão da tirania e não como símbolo de realeza e majestade: a idéia de justiça está atrelada à crença de que se apresenta como um bem para quem manda e um mal para quem obedece.

Estas leis são forjadas pelo espírito objetivo humano[8] - medida de todas as coisas -, na condição de cidadão (ser que vive nos limites territoriais da cidade/Estado), e o ordenamento jurídico, enquanto somatório das tradições, usos, costumes, arbítrio deste ou daquele tirano, exprimirá uma certa síntese valorativa, condicionamento de todo o Direito, que por isto mesmo se apresenta como variável no espaço e no tempo , refletindo sempre o ethos social e político vigente em cada pólis.

A cidade/Estado desde a filosofia da Sofística é forjada a partir de um processo de constituição da Lei, que, por sua vez, evidencia-se como um instrumento formal de manejo do poder político; daí surge a figura do cidadão, sujeito de direitos e obrigações. Assim, para o sofista Trasímaco, cada governo da cidade promulga a Lei que lhe convém e justo é o que agrada ao mais forte.

Fazendo outro registro histórico, uma das mais inquetantes contribuições da filosofia política moderna à questão da constituição e fundamento do Estado é dada por Hegel [9]. O pensador alemão, de uma certa forma, retoma a antiga tese Aristotélica sobre a fundamentação eminentemente política do Estado como instância máxima da racioanalidade e sociabilidade humana.

Tal paradigma vai se evidenciar na produção teórica de vários autores políticos contemporâneos, dentre os quais, Antonio Gramsci.

Se o Estado é concebido no início da Idade Moderna como a única saída para a civilização - tida aqui sob a ótica dos conquistadores e imperadores -, é também idealizado como produto da razão e de uma sociedade racional, contraposta diretamente à uma sociedade pré-estatal ou anárquica e desarmoniosa[10]. O modelo de organização social mediado pelo Estado em um determinado espaço físico, vem instituir um espaço de representação oficial do poder, a partir do qual se busca legitimar/legalizar o que Marx e Engels denominam a violência concentrada e organizada da sociedade.[11]

Para enfrentar as posturas de Gramsci, lembra Bobbio [12]os três elementos da doutrina marxiana que envolvem o Estado: o Estado como aparelho coercitivo; como instrumento de dominação de classe e como momento secundário em relação á sociedade civil, que o condiciona. Daqui parte Gramsci, entendendo que o Estado não é um fim em si mesmo, mas um aparelho, um instrumento, capaz de mediar os processos de transformações sociais e mesmo provocá-los, tudo de acordo com a cultura hegemônica existente.

No texto Passato e Presente[13], Gramsci assevera que o conceito de sociedade civil configura e mesmo é identificada à hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade.[14] Dessa forma, a conclusão de Bobbio é que, tanto Gramsci como Hegel situam a sociedade civil no âmbito de uma superestrutura existente na comunidade, porém, num plano mais amplo do que o mero economicismo reducionista do estruturalismo marxista ortodoxo.[15] Nesse momento superestrutural ocorre uma catarse, ou seja, dá-se a oportunidade de passagem da necessidade á liberdade, em razão do universo de interações e crises que a hegemonia cultural e política estabelece com seu habitat.

Este conceito de hegemonia tão bem trabalhado por Gramsci pode ser utilizado, guardadas as devidas proporções, para uma avaliação da história de formação do Estado no Ocidente[16]. Na leitura de Engels - obra já citada- no berço do mundo grego, na medida em que a propriedade privada se estabelecia com subsídio do sistema usurário da nobreza e dos grandes produtores, a constituição da família gentílica chegava ao fim e a sociedade vai crescendo demográficamente, ultrapassando os limites estreitos da gens.

O Estado se desenvolvia sem ser notado. Os novos grupos, formados pela divisão do trabalho (primeiro entre a cidade e o campo, depois entre os diferentes ramos de trabalho nas cidades), haviam criado novos órgãos para a defesa dos seus interesses,e foram instituídos oficios públicos de todas as espécies.[17]

Mesmo autores modernos como Sposito (1992) e Merlin (1996) tratam de forma similar este processo de formação do Estado e do espaço da cidade na cultura ocidental e sua vinculação orgânica com o modelo de produção existente a cada época, ou ao menos com a forma hegemônica de cultura de classes.

Se desde a grécia clássica os direitos e deveres dos cidadãos eram determinados de acordo com o total de terras que possuíam, considerando o processo de conquista territorial que se impunha aos povos colonizadores, e a partir do império romano se objetiva o processo de regulação da riqueza e dos interesses setoriais da comunidade, com as instituições jurídicas e politicas criadas, resta fácil a conclusão de que o território/propriedade passaria a ser o referencial de poder e exercício de autoridade do Estado[18].

O problema central que a teoria política, ao menos a contemporânea, têm de enfrentar é como reconciliar o conceito de Estado como uma estrutura de poder impessoal e legalmente circunscrita com novo plexo de direitos, obrigações e deveres dos indivíduos. Em outras palavras, como o Estado soberano deverá se relacionar com o povo soberano, que é reconhecido como a fonte legítima dos poderes do Estado.

Para Rousseau, preocupado com a questão da existência ou não de um princípio legítimo e seguro de governo[19], e contrário às teorias de Hobbes e Locke, as quais afirmam que a soberania é transferida do povo para o Estado, a soberania
"não pode ser apresentada, pela mesma razão que não pode ser alienada... os deputados do povo não são, e não podem ser, seus representantes; eles são meramente seus agentes; e eles não podem decidir nada em termos finais"[20].

Neste cenário de idéias, próprias do modelo liberal, a concepção de democracia atrela-se à figura do indíviduo/cidadão e às condições de possibilidades do seu desenvolvimento econômico, pois o papel do cidadão é o mais elevado a que um indivíduo pode aspirar. O exercício do poder pelos cidadãos, nos estritos termos da Lei, é a única forma legítima na qual a liberdade pode ser sustentada por este modelo.

À parte o fato de que o exercício direto do poder de decisão por parte dos cidadãos não é incompatível com o exercício indireto através de representantes eleitos, como demonstra a existência de constituições, tal qual a brasileira vigente- que prevê o instituto do plebiscito e do referendum popular-, tanto a democracia direta quanto a indireta descendem do mesmo princípio da soberania popular, apesar de se distinguirem pelas modalidades e pelas formas com que essa soberania é exercida - matéria que, aliás, faz a diferença em termos de qualidade do modelo.

E quando se fala em formas de exercício da soberania ou do poder soberano, que pressupõe a participação efetiva do indivíduo no processo de decisão política dos temas que lhe dizem respeito, percebe-se que a esfera política e individual está imersa em uma esfera mais ampla, que é a da socidade como um todo, e que inexiste decisão política que não esteja condicionada ou inclusive determinada por aquilo que acontece na sociedade civil.

Sob este ponto de vista, todo o grupo social está obrigado a tomar decisões que vinculam a todos os seus membros, com o objetivo de prover a própria subsistência: e, como estas decisões grupais são tomadas por indivíduos- por representação ou não-, para que sejam aceitas como coletivas, mister é que sejam levadas a termo com base em regras que estabeleçam quais os indíviduos autorizados a tomar decisões vinculatórias para todos os membros do grupo e à base de quais procedimentos.

Entretanto, é preciso lembrar, com Morais[21] que estas instituições não se reduzem à dimensão simbólica, mas só existem no simbólico, pois são legitimadas por signficações que encarnam sentidos reconhecidos pelas comunidades. Aqui pode-se trabalhar com o conceito de hegemonia Gramsciano, que caracteriza a liderança cultural-ideológica de uma classe sobre as outras. A constituição desta hegemonia é um processo historicamente longo, que pode e deve ser preparada pela classe que lidera um bloco histórico - enquanto ampla e durável aliança de classes e frações). Qualquer modificação da estrutura social, sob essa perspectiva, deve proceder de uma revolução cultural que, progressivamente, incorpore camadas e grupos ao movimento racional de emancipação.

Neste aspecto, novamente Bobbio é esclarecedor:
"Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos."[22]

Um governo ou sociedade democrática é aquele, então, que conta e mesmo define, a partir das relações de poder estendidas a todos os indivíduos, com um espaço político demarcado por regras e procedimentos claros, que efetivamente assegurem o atendimento às demandas públicas da maior parte da população, elegidas pela própria sociedade, através de suas formas de participação/representação.

Assim, uma vez existindo instrumentos eficazes de reflexão e debate público das questões sociais vinculadas à gestão de interesses coletivos- e muitas vezes conflitantes-, e ainda contando com os fundamentos da organização política e social do homem erigidos com o advento dos movimentos emancipacionistas do final do século XVIII- os direitos liberais de liberdade, de opinião, de reunião, de associação,etc-, forja-se um núcleo de direitos invioláveis , que representam os pressupostos necessários para o funcionamento dos mecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam um regime democrático.

Afora a crise da representação política que denuncia a realidade contemporênea, colocando em cheque as próprias instituições clássicas da democracia liberal burguesa (Parlamento, Partidos Políticos, Poder Judiciário e Executivo, etc), em razão da complexidade da sociedade industrial, outro modelo de democracia surge no cenário do século XX: a possibilidade de uma democracia mais participativa.

"Nos anos 60 e 70, a ação da Nova Esquerda norte-americana e a rebelião estudantil, de um lado, e a crescente insatisfação entre operários qualificados, funcionários administrativos de meios acadêmicos contra os sentimentos mais generelizados de alienação que então entraram em moda, de outro, provocavam uma discussão que denunciará as limitações dos modelos liberais de democracia e apontará a necessidade de maior participação de todos nas empresas, nas universidades, nos sindicatos e nos centros políticos."[23]


No âmago deste modelo, um problema surge à consecução de um dos possíveis paradigmas de sociedade democrática: a tendência cada vez mais burocratizante do processo decisório, que afasta desta sociedade a oportunidade de participação e debate sobre temas que lhe dizem respeito.

Para diminuir um pouco estas dificuldades, além das medidas preconizadas por Faria[24], mister é que se tenham algumas regras estabelecidas, as quais irão informar as condições de possibilidades de um regime democrático.

Utiliza-se, para tanto, a proposta de Cerroni:
"1. Regla del consenso. Todo puede hacerse si se obtiene el consenso del pueblo; nada puede hacerse si no existe este consenso. 2. Regla de la competencia. Para construir el consenso, pueden y deben confrontarse libremente, entre sí, todas las opiniones. 3. Regla de la mayoría. Para calcular el consenso, se cuentan las cabezas, sin romperlas, y la mayoría hará la ley. 4. Regla de la minoría. Si no se obtiene lal mayoría y se está en minoría, no por eso queda uno fuera de la ciudad, sino que, por el contrario, puede llegar a ser, como decía el liberal inglés, la cabeza de la oposición, y tener una función fundamental, que es la de criticar a la mayoría y prepararse a combatirla en la próximo confrontación. 5. Regra del control. La democracia, que se rige por esta constante confrontación entre mayoría y minoría, es un poder controlado o, al menos, controlable. 6. Regla de la legalidad. Es el equivalente de la exclusión de la violencia."[25]

Os institutos tradicionais da democracia burguesa associam estes mecanismos ou regras de procedimentos das políticas públicas à proteção de uma liberdade e igualdade meramente formal, restritas no espaço e no tempo pelos termos petrificados da lei, pretendendo com isto reduzir a idéia da democracia a uma mera técnica de posturas e comportamentos.


II. Concepções tradicionais de Estado Democrático de Direito.

Até o presente momento, tem-se claro que a linha política e filosófica de desenvolvimento das questões afetas à administração dos interesses públicos ou coletivos e aos poderes instituídos, ao menos no Ocidente, vem matizada pela cultura dos séculos XVI a XVIII, especialmente com os precurssores do modelo de Estado Liberal.

O enfrentamento teórico de temas como a soberania, legitimidade do poder, participação popular nas decisões políticas do Estado, a partir da matriz rousseauniana, resgata a reflexão sobre a democracia e sua associação com a tutela dos interesses efetivamente públicos e majoritários do corpo social - vontade geral.

De outro lado, não há como negar que é na figura do Estado que se vai encontrar um dos espaços públicos necessários à análise e reflexão dos assuntos polemizados.

Ao se falar de Estado, direta ou indiretamente, fala-se de ordem jurídica, pois, desde Max Weber, é possível reconhecer a forma específica de legitimidade do Estado moderno como sendo a sua reivindicação para que as suas ordens sejam reconhecidas como vinculatórias porque são legais, isto é, porque emitidas em conformidade com normas gerais e apropriadamente promulgadas.[26]

Esta figura do Estado com poder de mando, como poder com força imperativa para criar um conjunto de regras de comportamento, postular-las como obrigatórias e fazê-las cumprir, evidencia o estreito relacionamento que ele mantém com o direito.

Compreende-se, assim, que o Estado de Direito é concebido como um muro de contenção ao absolutismo, e a lei como emanação da vontade do povo e não como expressão da vontade do governante, o que precisa ainda ser debatido e recuperado em cada ciclo da história.

A participação do Estado enquanto pessoa jurídica de direito público na vida social é indiscutivelmente grande em todos os momentos da cultura ocidental, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, tendo ele adquirido um conteúdo econômico e social, para realizar, dentro de seus quadros, a nova ordem de trabalho e distribuição de bens ( o Estado Social de Direito). "O Estado Social de Direito correspondia a essa necessidade, opondo-se à anarquia econômica e à ditadura para resguardar os valores da civilização."[27]

O modelo de Estado Social de Direito é recepcionado pela Constituição de Bonn, em 1949, qualificando a Alemanha como um Estado Democrático e Social de Direito, que busca fundamentalmente a justiça e bem estar social, mesmo que de forma discursiva e meramente formal.

Nesse contexto, é possível perceber o surgimento de um discurso ideológico que pretende assegurar uma certa lógica aos poderes instituídos, fazendo com que as divisões e as diferenças sociais apareçam como simples diversidade das condições de vida de cada cidadão, e a multiplicidade de instituições forjadas pelo e no Estado, longe de representar pluralidades conflituosas, surgem como conjunto de esferas identificadas umas às outras, harmoniosa e funcionalmente entrelaçadas, condição para que um poder unitário se exerça sobre a totalidade do social e apareça, portanto, dotado da aura da universalidade, que não teria se se fosse obrigado a admitir realmente a divisão efetivada da sociedade em classes.[28]

Lembra Marilena Chaui[29] que:
"Para ser posto como o representante da sociedade no seu todo, o discurso do poder já precisa ser um discurso ideológico, na medida em que este se caracteriza, justamente, pelo ocultamento da divisão, da diferença e da contradição."

Quando se fala em Estado de Direito, ao menos no âmbito da era contemporânea, pode-se frisar como características, por um lado, as fornecidas por Elias Diaz[30]:
" a) império da lei: lei como expressão da vontade geral; b) Divisão dos Poderes: legislativo, executivo e judiciário; c) Legalidade da Administração, atuação segundo a lei e suficiente controle judicial; d) Direitos e liberdades fundamentais: garantia jurídico-formal e efetiva realização material."

Deve se considerar, por oportuno, que, nos países do denominado common law, desde a revolução de Cromwell, encontra-se demarcado os pressupostos do rule of law, sintetizados em três pontos por Dicey[31]: a) a ausência de poder arbitrário por parte do Governo; b) a igualdade perante a Lei; c) as regras da Constituição são a conseqüência e não a fonte dos direitos individuais, pois, os princípios gerais da Carta Política são o resultado de decisões judiciais que determinam os direitos dos particulares em casos trazidos perante as cortes.

É o império da lei que se impõe, devendo significar que o legislador mesmo se vincule a própria lei que cria, tendo presente que a faculdade de legislar não é instrumento para uma dominação arbitrária. Esta vinculação do legislador à lei, entretanto, para os bons homens dotados de boas intenções, só é possível na medida em que ela seja constituída com certas propriedades/pressupostos: moralidade, razoabilidade e justiça, por exemplo.

Entretanto, a história nos mostra que
"La validez simplesmente formal de las leyes establece el contraste entre ley y justicia, así como dentro de la recta razón de la ordenación legal con miras al bien común y la voluntad del legislador; o en otros términos, entre el imperio de la ordenación racional y el imperio de la voluntad del hombre."[32]

Esta leitura do Estado Democrático de Direito como condições e possibilidades de governos regidos pelos termos da Lei não é suficiente quando se pretende enfrentar os conteúdos reais da existência de sociedades dominadas pelas contradições econômicas e culturais e de cidadanias esfaceladas em sua consciência política.

Em outras palavras, a Democracia Liberal, ao designar um único e verdadeiro padrão de organização institucional baseado na liberdade tutelada pela lei, na igualdade formal, na certeza jurídica, no equilíbrio entre os poderes do Estado, abre caminho à conquista da unanimidade dum conjunto de atitudes, hábitos e procedimentos, os quais, geralmente, refletem a reprodução do status quo . Em tal quadro, compete ao Estado de Direito tão-somente regular as formas de convivência social e garantir sua conservação; a economia se converte numa questão eminentemente privada e o direito, por sua vez, se torna predominantemente direito civil, consagrando os princípios jurídicos fundamentais ao desenvolvimento capitalista, como os da autonomia da vontade, da livre disposição contratual e o da pacta sun servanda.

É bom lembrar as palavras de José Eduardo Faria:
" Ao regular as relações e os conflitos sociais num plano de elevada abstração conceitual, sob a forma de um sistema normativo coerentemente articulado do ponto de vista lógico-formal, a lei nada mais é do que uma ficção a cumprir uma função pragmática precisa: fixar os limites das reações sociais, programando comportamentos, calibrando expectativas e induzindo à obediência no sentido de uma vigorosa prontidão generalizada de todos os cidadãos, para a aceitação passiva das normas gerais e impessoais, ou seja, das prescrições ainda indeterminadas quanto aos seu conteúdo concreto."[33]

Para José Maria Gomez[34], contrariamente ao que defende a doutrina do Estado de Direito, o jurídico é antes de mais nada político; o direito positivo não é uma dimensão autônoma do político e um fundamento do Estado, mas uma forma constitutiva do mesmo e submetido a suas determinações gerais. Diz o autor que o culto da lei e a separação dos poderes se interpõem como véu ideológico que dissimula e inverte a natureza eminentemente política do direito.

Aliás, no Brasil, alguns constitucionalistas como Manoel Gonçalves Ferreira Filho[35], resistindo a própria idéia de politização do chamado Estado de Direito, vêem, de forma negativa, a Lei como um instrumento político, um meio para a realização de uma política governamental, motivo por que não se legitima por um conteúdo de justiça e sim por ser expressão da vontade política do povo ou do governo. Assim, "a politização das leis fere, não raro, a racionalidade do Direito, gera leis irracionais."[36]

Com tal perspectiva, eminentemente formalista e neutral, há uma tendência ainda majoritária, principalmente na América Latina, de se reduzir o modelo de Estado de Direito a uma vinculação e controle do ordenamento jurídico vigente, sem, portanto, dar-se atenção ao processo legislativo como um forum de enfrentamento ideológico e político, mas tão-somente técnico; ou perceber-se que, do mesmo modo que o Estado denominado de Direito, o próprio Direito e a Lei representam uma forma condensada das relações de força entre os grupos sociais que determinam a sua origem, seu conteúdo e a lógica de seu funcionamento.

Pode-se dizer, enfim, que a idéia de Estado Democrático de Direito, como o próprio tema da Democracia, passa pela avaliação da eficácia e legitimidade dos procedimentos utilizados no exercício de gestão dos interesses públicos e sua própria demarcação, a partir de novos espaços ideológicos e novos instrumentos políticos de participação ( por exemplo, as chamadas organizações populares de base), que expandem, como prática histórica, a dimensão democrática da construção social de uma cidadania contemporânea, representativa da intervenção consciente de novos sujeitos sociais neste processo. Como lembra Warat:
"No existe nada de antemano establecido como sentido del Estado de derecho, la enunciación de sus sentidos sera permanentemente inventada para permitir una gobernabilidad no disociada de las condiciones democraticas de existencia."[37]



III. O Estado de Direito no Brasil: aspectos controvertidos.

De uma certa forma se saba há muito tempo que os movimentos políticos e constitucionalistas no Brasil se caracterizam pela formalização de interesses setoriais da sociedade local, protegendo, como sempre, uma minoria bastante abastada e, sob os ventos do racionalismo enciclopedista europeu, criaram, desde o final do século XIX, um grupo de intelectuais e juristas que exigiram a colocação da vida nacional sob a égide de uma Lei escrita revestida de caracteres especialíssemos, nos moldes do que vem a ocorrer na França de 1789 e nas colônias inglesas da Améria em 1776.

Com a progressiva invasão do capital internacional no Brasil, opera-se uma crescente desnacionalização do poder político. Tal situação se evidencia na elaboração das Cartas Políticas - 1891[38], a reforma de 1926, as cartas de 1934, de 1937 e de 1946, que serão analisadas mais tarde- e nas Leis infraconstitucionais. Este capital extrangeiro, centrado na indústria, na mineração e no aproveitamento hidrelétrico, influencia, por intermédio de seus advogados enquistados na administração e no Congresso, as normas de proteção de suas atividades e a formação da estrutura do Estado a seu favor.

"O horizonte ideológico do constitucionalismo político do período pós-independência traduziu não só o jogo dos valores institucionais dominantes e as diversificações de determinado momento da organização político-social, como também expressou a junção notória de algumas diretrizes, como o liberalismo econômico sem a intervenção do Estado, o dogma da livre iniciativa, a limitação do poder centralizador do governante e a supremacia dos direitos individuais."[39]
Este tipo de industrialização, por sua vez, faz surgir um proletariado que tende a organizar-se em sindicatos , corporações ou partidos políticos. Suas reivindicações crescem em peso e em qualidade; exige modificações na estrutura do Estado, postulando maior participação, denunciando os privilégios obtidos pelos setores mais poderosos, notadamente o capital extrangeiro.
Com o significativo avanço das forças populares ocorrido no início da década de 1960, a burguesia nacional, aliada às empresas multinacionais, corre o risco de perder, em eleições, o controle da estrutura do Estado. Tal fato, leva as forças políticas comprometidas com os grupos dominantes - entre eles a maior parte do clero- e o exército, recorrerem ao golpe de Estado de março de 1964. Estes grupos substituíram a Constituição liberal de 1946 pelas autoritárias de 1967 e 1969, sujeitas ao poder discricionário da Ditadura.

Pode-se evidenciar, com absoluta nitidez, que as estruturas do Estado brasileiro permanecem, neste período, centralizadas no poder da Presidência da República e nos organismos de informação das forças armadas, controlando todos os órgãos da administração federal, estadual e municipal, incluindo, de forma indireta, o Poder Legislativo e Judiciário; manutenção de leis repressivas e o comando da economia pelo capital internacional, através de uma dívida externa que as autoridades competentes não ousam questionar.

O que se quer sublinhar com estas reflexões é que a história política e constitucional brasileira, antes de forjar uma tradição democrática e popular na elaboração de seus comandos jurídicos, soube tão-somente estabelecer pactos e compromissos com um grupo minoritário de indivíduos, detentores da maior parcela do mercado de produção e capitais.

Na verdade, as normas contidas nos textos constitucionais brasileiros (elas servem como um parâmetro de interpretação da organização social), até a carta de 1988, estabelecem pautas de comportamentos e condutas somente ao cidadão. Nestes períodos, de forma visível e até radical, percebe-se a drástica distância que pode existir entre Constituição e Sociedade, quando esta é construída a despeito das demandas populares, servindo apenas para delimitar o que pode e o que não pode ser feito pelo cidadão, impondo um tipo de vida e aceitação das estruturas políticas, econômicas e culturais vigentes.

Por um lado, a Assembléia Constituinte que "elabora" a Constituição de 1988 não demonstra no próprio processo de construção da nova Carta respeito à representação popular que a constitui, deixando de interagir com as reais e profundas demandas sociais. Com tal feição, o Congresso se utiliza de práticas fisiológicas e clientelísticas, fazendo com o que o jogo político continue significativamente dependente das negociações que se travam no âmbito do Executivo.

Por outro lado, entre avanços e recuos, a Constituinte consegue, pela insistência de poucos segmentos políticos, alinhavando compromissos em torno de temas ligados a grande parte da população brasileira, insculpir no texto final matérias de ampla abrangência social, contemplando varios direitos fundamentais que a modernidade relegou à sociedade política.

Porém, tais avanços formais, por si só, não são suficientes para viabilizar mudanças estruturais na forma de constituição e operacionalização do poder político nacional. Contudo, pode-se afirmar que, como referencial jurídico, a carta de 1988 alargou significativamente a abrangência dos direitos e garantias fundamentais, e, desde o seu preâmbulo, prevê a edificação de um Estado Democrático de Direito no país, com o objetivo de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Nos seus artigos introdutórios, a Constituição estabelece um conjunto de princípios que delimitam os fundamentos e os objetivos da República. Dentre estes, destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana. (art.1º e 3º).

Assim, construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação, constituem os objetivos fundamentais do Estado brasileiro.

Pode-se perceber, daí, que o Congresso Constituinte optou por elevar ao condão de princípios o resguardo do direito à dignidade humana, na medida em que, explicitamente, privilegia a temática dos direitos fundamentais, outorgando-lhes, ainda, a natureza de cláusula pétrea, nos termos do art.60, parágrafo 4º, IV.

Cumpre analisar, agora, qual a natureza dos nominados princípios constitucionais insertos no ordenamento jurídico pátrio.


IV. Os princípios constitucionais como indicadores da legitimidade do exercício do poder político no Brasil.

Mesmo considerando a existência do princípio da unidade da Constituição, vigente desde há muito na tradição constitucional do Ocidente, segundo o qual todas as suas normas apresentam o mesmo nível hierárquico, existem, para a moderna teoria constitucional, duas modalidades distintas de normas dentro da Carta Política : (1) as denominadas normas-princípios e as normas-disposições, compondo um todo junto ao ordenamento jurídico.

As normas-princípios afiguram-se como mandamentos estruturais e indispensáveis à organização da regulação jurídica e ordenação social, ou, como quer Celso Mello[40],

são disposições fundamentais que se irradiam sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critérios para sua exata compreensão e inteligência.

Estes princípios contém valores políticos e sociais fundamentais ditados pela sociedade, de forma explícita ou implícita, concretizados em diversas normas da Constituição ou cuja concretização a Constituição impõe.

A contemporânea teoria constitucional alemã, com Hesse[41], Häberle[42] e sua versão portuguesa, com Canotilho[43], dá conta de que os princípios são exigências de otimização abertas a várias concordâncias, ponderações, compromissos e conflitos, como os princípios do Estado Democrático de Direito, da igualdade, da liberdade, etc.

No âmbito ainda da cultura jurídica brasileira, pode-se citar, a título de ilustração argumentativa, o ensinamento de Carlos Maximiliano[44], para quem
todo o conjunto de regras positivas representa sempre e apenas o resumo de um complexo de altos ditames, série de postulados que enfeixam princípios superiores. Constituem estes as idéias diretivas do hermeneuta, os pressupostos científicos da ordem jurídica.

José Afonso da Silva, reconhecido constitucionalista brasileiro, denomina os mandamentos jurídicos do Título I da Carta de 1988 como princípios políticos-constitucionais, eis que configuram

"decisões políticas fundamentais concretizadas em normas conformadoras do sistema constitucional positivo, e são, segundo Crisafulli, normas-princípio, isto é, normas fundamentais de que derivam logicamente (e em que, portanto, já se manifestam implicitamente) as normas particulares regulando imediatamente relações específicas da vida social."[45]

A lição de Canotilho esclarece de vez a matéria:

"Na sua qualidade de princípios constitucionalmente estruturantes, os princípios fundamentais devem ser compreendidos na sua ligação concreta com uma determinada ordem jurídico-constitucional, historicamente situada....... embora não sejam princípios transcendentes, eles podem ser sempre tomados como dimensões paradigmáticas de uma ordem constitucional justa, à luz de critérios historicamente sedimentados."[46]

V. Conslusão:

Uma das maiores autoridades em Administração Pública no Brasil, Tarso Genro[47], vem alertanto que, numa sociedade, como a brasileira, divida em grupos tão diferenciados e composta de incluídos e excluídos do modelo de desenvolvimento que se apresenta, começa abalar a tão decantada segurança jurídica ocidental, em que os padrões de convívio civilizado tornam-se cada vez mais artificiais, escondendo conflitos extremos.

Para o mesmo autor, nesta sociedade,

A crise da eficácia e representatividade do Estado moderno vem sendo acobertada politicamente pelo ideário neoliberal, que traduz a submissão da política, da cultura, da educação, etc, às necessidades espontâneas de um novo salto no processo de acumulação, organicamente organizado pelo capital financeiro em escala mundial.[48]

Torna-se fácil, em tal quadro, como uma das alternativas às diversas crises institucionais relatadas, a conclusão de que os princípios supra-referidos têm a função de delimitar os campos e possibilidades, de interpretação e integração, das demais normas constitucionais e infraconstitucionais, ou seja, qualquer criação, interpretação e aplicação de lei ou ato de governo, deve ter como fundamento o comando da norma que diz ser a República Federativa brasileira um Estado Democrático de Direito, com objetivos claros a perseguir e tutelar (art.3º), o que significa estabelecer responsabilidades e prioridades políticas interventivas em todos os campos das demandas sociais explíticas e reprimidas.

Neste sentido, por exemplo, a ordem econômica deve assegurar a todos existência digna (art.170,CF/88), enquanto que a ordem social deve visar a realização da justiça social (art.193), e a educação, o preparo do indivíduo para o exercício da cidadania (art.205).

De outro lado, uma vez que a legitimidade do texto constitucional - e toda e qualquer ordem jurídica pátria- tem seu sustentáculo principiológico e político neste Título I, pode-se também concluir que o plano de eficácia dos Poderes do Estado é medido pela busca, respeito e garantia dos direitos humanos ou fundamentais[49], latu sensu, principalmente após a promulgação, em nossa legislação interna, dos textos convencionais conhecidos como Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, consoante os Decretos nº592, de 06.07.1992 , e o de nº678, de 06.11.1992.

Tal raciocínio afasta a idéia de que o Constituinte de 1988 pretende instituir, kelsenianamente, um mero Estado de Legalidade, apenas formalmente ligado à Constituição, mas, ao contrário, faz crer que a ênfase dada pelos objetivos, fundamentos e princípios constitucionais à República brasileira é a de se constituir em um efetivo Estado Democrático, que, por sua vez, implica o reconhecimento da postura interventiva e constante do Poder Público à efetivação/concretização das normas constitucionais, como parte de seu poder/dever institucional.

A despeito disso e paradoxalmente, a história nacional convence que a Lei, inclusive a Constituição, veiculada pelo Estado, é imposta à comunidade, em nome de um pacto ou consenso meramente formal, cuja vigência, eficácia e validade não são discutidas pelos seus destinatários, eis que tais categorias são lidas tão somente no âmbito intra-sistêmico do processo legislativo formal e de sua adequação procedimental junto às instâncias oficiais de aplicação da norma jurídica. A Constituição, nesta ótica, se apresenta como sendo a expressão verbal da normatividade de uma dominação, que em verdade é exercida para manter ou colocar no poder uma determinada elite.

Ferrajolli[50], em excelente trabalho, indo ao encontro de nossa reflexão, conclue sobre a existência de uma crise do Direito e do Estado, resultado do constante afastamento e passividade das autoridades competentes das demandas mais emergentes de sua cidadania, apresentando três aspectos dela: (1) Crise de Legalidade, identificando-a como a crise do valor vinculativo associado às regras pelos titulars dos poderes públicos, que se exprime na ausência ou na ineficácia dos controles, e portanto na variada e espetacular fenomenologia da ilegalidade do poder. Tal crise, revela uma crise constitucional, evidenciada pela progressiva erosão do valor das regras do jogo institucional e do conjunto dos limites e dos vínculos por elas impostos ao exercício do poder público.

Há, de outro lado, uma (2) Crise de inadequação estrutural das formas de Estado de Direito às funções do Welfare State, agravada pela acentuação do seu caráter seletivo e desigual, em consequência da crise do Estado Social. A deteriorização da forma da lei, a incerteza gerada pela incoerência e pela inflação normativa e, sobretudo, a falta de elaboração de um sistema de garantias dos direitos sociais, comparável, pela capacidade de regulação e de controle, ao sistema das garantias tradicionais disponíveis para a propriedade e a liberdade, representa de fato, não só um fator de ineficácia dos direitos, mas também o terreno mais fecundo para a corrupção e para o arbítrio.

Por fim, há uma evidente (3) Crise do Estado Social manifestada pelo deslocamento dos lugares de soberania, com a alteração do sistema de fontes jurídicas, o que gera um enfraquecimento do constitucionalismo. O processo de globalização econômica deslocou para fora das fronteiras dos estados nacionais as sedes das decisões tradicionalmente reservadas à sua soberania, tanto em matéria militar, de política monetária e de políticas sociais. Com estas novas fontes de produção jurídica - como as do Direito Europeu Comunitário (diretivas, regulamentos), e depos do Tratado de Maastricht, decisões em matéria econômica e até militar são subtraídas do controle parlamentar e, simultaneamente, a vínculos constitucionais, quer nacionais quer supranacionais.

Esta tríplice crise do Direito corre o risco de gerar uma crise da democracia, pois elas se apresentam, em última análise, a uma crise do princípio da legalidade, sobre o qual se fundam quer a soberania popular, quer o paradigma do Estado de Direito, permitindo a reprodução no âmbito dos próprios ordenamentos jurídicos de formas neo-absolutistas de poder público, isentas de limites e de controles e governadas por interesses fortes e ocultos.

Talvez, como quer Tarso[51], em termos de laboratório de governo democrático, as administrações locais em cidades estratégicas possam e devam ser palco de experimentos políticos de alcance universal, à medida em que instituem um processo combinado de democracia representativa com formas democráticas diretivas de caráter voluntário, gerando normativas de uma nova relação Estado-sociedade, articulando a representação política com a mobilização desta nova esfera pública não-estatal, que já existe independente da decisão estatal.

[1]Wolkmer (1990:p.11)
[2]Esta é a posição de grande parte da filosofia política clássica da Grécia e mesmo Romana, matéria que será abordada nos capítulos seguintes. Ver, neste sentido, Leal(1997).
[3]Um dos textos clássicos que enfrenta esta reflexão é o de Engels(1984).
[4]Leal (1997)
[5]Bonavides (1980:p.208)
[6]Battaglia (1981:p.128), registra que os Sofistas arruínam os postulados fundamentais da pólis; plantam dúvidas nos espíritos, insinuam a descrença nos valores, levantam mais problemas que resolvem, aniquilando a tradição mítica entáo operante na cultura da época, apagando o culto dos heróis e afrouxando as tradições domésticas; fazem da crença na origem divina das leis um anacronismo pueril.
[7]Neste sentido a obra de Rommen (1975).
[8]Apesar de Platão, no diálogo Protagorás, consignar que no pensamento sofista, o justo e bom é o que, como tal, se afigura ao Estado, na medida em que este o assim entender. Veja-se que o mito de Protagorás não implica uma contradição com sua medida relativista e antropológica. O Zeus de Protagorás é o Logos, a razão humana, que está na terra e não no céu, que nada tem a ver com o Zeus da mitologia; é puramente alegórico.
[9]Hegel (1986)
[10] Hegel chama esse período de sociedade pré-política, sociedade natural.
[11] Bobbio(1989:p.21)
[12]Bobbio (1989)
[13] Gramsci (1990)
[14] Bobbio(1989: pg.34).
[15] Entre a premissa (estrutura econômica) e a conseqüência (constituição política), as relações não são absolutamente simples e diretas; e a história de um povo não é documentada apenas pelos fatos econômicos. A explicitação das causalidades é complexa e intrincada; e, para desintrincá-la, não basta outra solução além do estudo aprofundado e amplo de todas as atividades espirituais e políticas. Veja-se que, para Marx, a sociedade civil é tão somente o conjunto de relações econômicas constitutivas da base material, conforme Bobbio(1987:p.40).
[16]Utilizamos este referencial na análise do urbanismo no Brasil, texto publicado pela Revista de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (1995).
[17]Engels (1984:p.92). Veja-se que Werner Jaeger(1990:p.104) já adverte que a filosofis desde os jônios e com Heráclito apresenta convencimento de que o princípio de tudo é a luta, que a guerra faz a uns deuses, a outros escravos.
[18]É importante registrar que o estudo clássico de Fustel de Coulanges (1975: p.50) nos lembra que há três coisas que, desde as mais remotas eras, se encontram fundadas e estabelecidas sólidamente pelas sociedades grega e italiana: a religião doméstica, a família e a propriedade. Tais elementos serão recorrentes em toda a conformação do Ocidente, nas mais diversas culturas colonizadoras.
[19] O Contrato Social. J. J. Rousseau, ed. Abril Cultural, coleção os pensadores, 1988, p. 49.

[20] O Contrato Social. J. J. Rousseau, op. cit., p.141.

[21] Morais (1995:p.39)- As linhas do Imaginário Social. Denis de Morais.PROCURAR.
[22] O Futuro da Democracia. Norberto Bobbio, op. cit., p.18.

[23] Retórica Política e Ideologia Democrática, José Eduardo Faria, ed. Graal, Rio de Janeiro, Brasil, 1984, p.93.

[24] "Um de seus requisitos é a mudança da consciência popular: o que se propõe é que, deixando o papel de consumidor, cada indivíduo passe a agir como executor e desfrutador da execução e desenvolvimento de sua capacidade;.... outro de seus requisitos é a diminuição da desigualdade sócio-econômica." Retórica Política e Ideologia Democrática, José Eduardo Faria, op. cit., p.95.

[25] Reglas y valores en la democracia. Umberto Cerroni, ed. Alianza Editorial, México, Distrito Federal, 1991, p.191.

[26] Vai-se retormar este tema mais adiante, quando da crítica a este modelo, entretanto, é oportuno lembrar a posição de Gianfranco Poggi, no livro A Evolução do Estado Moderno, ed. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1981, p.139.: "... a forma motivadora de tal noção é relativamente frágil porque não evoca um poderoso ideal substantivo, um padrão universalmente compartilhado de validade intrínseca mas, pelo contrário, refere-se a considerações puramente formais e sem conteúdo de correção processual."

[27] Estado de Direito. Pedro Vidal Neto, ed. LTr, São Paulo, 1979, p.165.

[28] Veja-se que, se tal divisão fosse reconhecida, teria o Estado de assumir-se a si mesmo como representante de uma das classes da sociedade.

[29] Cultura e Democracia. Marilena Chaui, ed. Cortez, São Paulo, 1989, p.21.

[30] Estado de Derecho y Sociedad Democratica. Elias Diaz, Editorial Cuadernos para el Dialogo. Madrid, Espanha, 1975, p.29.

[31] Ver o texto de Carl Dicey, Introduction to the study of the law the constitution, ed. MacMillan, London, Inglaterra, 1981, p.202.

[32] Es Estado, El Derecho y el Estado de Derecho. Juan Guillermo Ruiz Hurtado, op. cit., p.245.

[33] Na obra O Direito e a Justiça, op. cit., p.134. No mesmo texto, o autor adverte para o fato este recurso usado pelo sistema estatal vigente, valendo-se de normas crescentemente indeterminadas e conceitualmente abstratas termina por representar, sob a fachada de um formalismo jurídico dotado de funcionalidade legitimadora, a concentração dos processos decisórios no interior da ordem burocrática institucionalizada pelas esferas de poder oficiais, voltada à articulação, negociação e ajuste dos interesses dos grupos sociais e frações de classe mais mobilizadas.

[34] Surpresas de uma Crítica: a propósito de juristas repensando as relações entre o Direito e o Estado, in Crítica do Direito e do Estado, ed. Graal, Rio de Janeiro, 1984, p.107.

[35] Estado de Direito e Constituição, ed. Saraiva, São Paulo, 1988. Na mesma linha de reflexão vai Pinto Ferreira, na obra Comentários à Constituição Brasileira, ed. Saraiva, São Paulo, 1990; Rosah Russomano, na obra Curso de Direito Constitucional, ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1978; Afonso Arinos de Melo Franco, na obra Curso de Direito Constitucional Brasileiro, ed. Forense, Rio de Janeiro, 1968; Celso Ribeiro Bastos, na obra Curso de Direito Constitucional, ed. Saraiva, São Paulo, 1990; José Cretella Jr., na obra Comentários à Constituição de 1988, ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1988.

[36] Op. cit., p.47.

[37] Fobia al Estado de Derecho, Luis Alberto Warat, in Anais do Curso de Pós-graduação em Direito, Universidade Integrada do Alto Uruguais e Missões - URI, Rio Grande do Sul, Brasil, 1994, p.18.

[38] É interessante lembrar que, tanto a Constituição de 1824 como a de 1891, a despeito de marcarem períodos históricos diferentes, caracterizam-se pelas mesmas influências liberais-democráticas, sacralizando a manutenção da propriedade privada e a liberação dos ajustes econômicos de interesses setoriais no Brasil. Adverte Wolkmer, no livro Constitucionalismo e Direitos Sociais no Brasil, ed. Acadêmica, São Paulo, 1989, p.33, que "Ambos os textos representam o controle político-econômico das oligarquias agroexportadoras, que, enquanto parcelas hegemônicas no poder, demarcam todo o quadro da evolução do Constitucionalismo político compreendido entre a indenpendência do país e o fim da Velha República. Os textos constitucionais cristalizam negociações onde sobressaiam a predominância de frações definidas da classe dominante e uma instrumentalização ampla do Estado no sentido de suas proposições.".

[39] Constitucionalismo e Direitos Sociais no Brasil, Antônio Carlos Wolkmer,op. cit., p.29.

[40] Elementos de Direito Administrativo. Celso Antônio Bandeira de Mello. ed. Revista dos Tribunais.1990. p.230.
[41] A força normativa da constituição.Konrad Hesse. Porto Alegre:Fabris, 1991.
[42] Hermenêutica constitucional. Peter Háberle. Porto Alegre:Fabris.1997.
[43] A Constituição Dirigente.José Gomes Canotilho. Coimbra: Coimbra.1997.
[44] Hermenêutica e Aplicação do Direito. Carlos Maximiliano, ed. Forense, Rio de Janeiro, Brasil, 1992, p.295.

[45] Curso de Direito Constitucional Positivo. José Afonso da Silva, ed. Malheiros, São Paulo, Brasil,1992, p.85.

[46] Fundamentos da Constituição. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ed. Coimbra, Coimbra, Portugal, 1991, p.71/72.

[47] Nova crise do Direito e do Estado. Tarso Genro. Artigo publicado na Folha de São Paulo, em ...
[48] O novo espaço público. Tarso Genro. Artigo publicado na Folha de São Paulo, 09/06/96. Suplemento Mais:p.03.

[49] Tratamos do tema legitimidade do poder político a partir da constituição em nosso livro Teoria do Estado: cidadania e poder político na modernidade. Rogério Gesta Leal. Porto Alegre: Livraria do Advogado.1997.
[50] O Direito como sistema de garantias. Luigi Ferrajoli. in O Novo em Direito e Política, p.89. Liv. Advogado,1997.

[51] O novo espaço público. Tarso Genro. Artigo publicado na Folha de São Paulo, 09/06/96. Suplemento Mais:p.03.

Rogério Leal
Professor Universitário
Advogado

Um comentário:

Ashton - Guerrilheiro do Direito disse...

genial! Mas procure sintetizar as idéias...
valeu!